Professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (IEUnicamp), André M. Biancarelli |
Resumo
O presente texto procura jogar luz sobre o que se julga ser a característica distintiva da Era Lula em termos econômicos: uma maior sintonia entre objetivos econômicos e sociais. A hipótese com a qual se trabalha é a de que o conteúdo social do desenvolvimento brasileiro, ensaiado na Era Lula, é não apenas defensável do ponto de vista moral, como também se mostra a melhor alternativa econômica diante das dificuldades e limitações enfrentadas pelo Brasil atualmente.
As seções do texto tratam, na sequencia, do contexto histórico a envolver essas questões; dos bons resultados do governo Lula (2003-2010); das dificuldades e reações no mandato de Dilma (pós-2011) e, por fim, de algumas ideias e prioridades para renovar e aprofundar este “social-desenvolvimentismo”.
Palavras-chave
Era Lula, estratégia de desenvolvimento, crescimento, justiça social.
Recebido em 12 de novembro de 2013
Aprovado em 4 de fevereiro de 2014
Biancarelli, André M. A Era Lula e sua questão econômica principal: crescimento, mercado interno e
distribuição de renda. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 58, p. 263-288, 2014.
DOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i58p263-288
O presente texto procura jogar luz sobre o que se julga ser a característica distintiva da Era Lula em termos econômicos: uma maior sintonia entre objetivos econômicos e sociais. A hipótese com a qual se trabalha é a de que o conteúdo social do desenvolvimento brasileiro, ensaiado na Era Lula, é não apenas defensável do ponto de vista moral, como também se mostra a melhor alternativa econômica diante das dificuldades e limitações enfrentadas pelo Brasil atualmente.
As seções do texto tratam, na sequencia, do contexto histórico a envolver essas questões; dos bons resultados do governo Lula (2003-2010); das dificuldades e reações no mandato de Dilma (pós-2011) e, por fim, de algumas ideias e prioridades para renovar e aprofundar este “social-desenvolvimentismo”.
Palavras-chave
Era Lula, estratégia de desenvolvimento, crescimento, justiça social.
Recebido em 12 de novembro de 2013
Aprovado em 4 de fevereiro de 2014
Biancarelli, André M. A Era Lula e sua questão econômica principal: crescimento, mercado interno e
distribuição de renda. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 58, p. 263-288, 2014.
DOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i58p263-288
Introdução
O agravamento nas condições econômicas no Brasil nos anos de 2012 e 2013 – em termos de taxas de crescimento, inflação, contas externas e contas públicas – ainda que longe de justificar o alarmismo reinante, revela um acentuado contraste com o otimismo do final do governo Lula (2003-2010).
Também impulsionado pela onda de protestos que tomou conta das grandes cidades brasileiras em junho de 2013, e inevitavelmente sofrendo as influências da eleição presidencial marcada para outubro de 2014, o debate tem sido marcado por uma série de balanços críticos sobre a “Era Lula” e sua estratégia econômica, não faltando diagnósticos categóricos e previsões pessimistas.
Considerando o governo Dilma Rousseff uma continuação dos dois mandatos anteriores – o que aqui se julga correto e útil –, as apreciações apontam desde uma “insustentabilidade do crescimento baseado no consumo” até a vinculação exclusiva dos bons resultados passados ao cenário internacional favorável. Chamam a atenção as críticas a um excesso de intervencionismo estatal e ao “populismo”, que trocaria alguma melhora nas condições atuais de vida da população pelo comprometimento futuro das condições de crescimento e desenvolvimento. O governo Dilma, em suma, estaria recebendo “a conta” da irresponsabilidade dos dois mandatos iniciais da Era Lula, e ao insistir nas opções equivocadas estaria colhendo sucessivo fracassos(2).
(2) Esta visão, com variados graus de sofisticação e público-alvo, está presente em várias manifestações (artigos, entrevistas etc.) de economistas renomados como Edmar Bacha, Samuel Pessoa, Marcos Lisboa, entre outros, em coletâneas de trabalhos como Giambiagi , F.; Porto , C. (orgs.). Propostas para o governo 2015-2018. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013. Ou em obras como a de VILLA, M. A. Década perdida: dez anos de PT no poder. São Paulo: Record. Infelizmente não há espaço para uma discussão 266 Rev. Inst. Estud. Bras., São Paulo, n. 58, p. 263-288, jun. 2014
O presente texto, que não comunga desta percepção geral, procura jogar luz sobre o que se julga ser a característica distintiva da Era Lula em termos econômicos: uma maior sintonia entre objetivos econômicos e sociais, ou a associação entre crescimento (e outros aspectos puramente econômicos do desenvolvimento) e a busca de maior justiça social. Tal busca, adiante-se desde já, é vista aqui como limitada e insuficiente. Do mesmo modo, não é difícil identificar uma série de inconsistências e problemas na condução da economia, com diferentes graus de consequências negativas. Porém, esta que se entende como a questão econômica principal da Era Lula é tomada aqui como o eixo incontornável para a reflexão sobre a experiência recente e para o debate sobre caminhos futuros.
A hipótese com a qual se trabalha é a de que o conteúdo social do desenvolvimento brasileiro que se ensaiou na Era Lula é não apenas defensável do ponto de vista moral, como também se mostra a melhor alternativa econômica diante das dificuldades e limitações enfrentadas pelo Brasil atualmente. Indo além, defende-se que os avanços sociais experimentados, para seguirem sendo instrumento de avanço civilizatório e motor do dinamismo econômico, carecem de renovação e aprofundamento, com foco nos direitos e serviços sociais e na progressividade da carga tributária.
Com este norte, o texto está organizado em mais quatro seções além desta Introdução. Na primeira, retoma-se de maneira muito sucinta a evolução das relações entre o dinamismo econômico, o mercado doméstico e a situação social ao longo da história do Brasil.
Na segunda, são discutidos os mecanismos e os bons resultados obtidos durante os dois mandatos de Lula (2003-2010). Na terceira, as dificuldades e os desafios explicitados durante o mandato de Dilma (desde 2011) são apresentados, bem como comentadas algumas das propostas de rumos alternativos em debate no Brasil. Por fim, a quarta seção sintetiza uma agenda de temas e prioridades para manter em curso, renovando-o, o “social-desenvolvimentismo” esboçado até aqui na Era Lula.
Mais alongada destes pontos de vista, que se pode considerar dominantes no atual debate público brasileiro. Na penúltima seção, alguns argumentos e propostas são resumidos e criticados.
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Breve volta a uma velha questão
Presidente Washington Luiz |
O Brasil, como é sabido, surge enquanto nação independente em 1822 carregando a herança de mais de três séculos de colonização. Entre os mais importantes legados deste período, a escravidão, a orientação primário-exportadora da economia (com sucessivas “ondas” das exportações de commodities: açúcar, borracha, ouro e café) e a consequente concentração da propriedade da terra e da riqueza. Mesmo após a independência, por mais de um século, a organização geral da economia brasileira conservou a mesma mecânica de funcionamento: uma ou duas commodities primárias como a principal fonte de receitas estrangeiras, vulnerabilidade externa (frente às oscilações periódicas nos seus preços e nas condições dos empréstimos internacionais) e nenhum papel significativo para o mercado interno enquanto alavanca do dinamismo econômico. Quanto à questão social, a melhor caracterização é a contida na citação atribuída a Washington Luís, o último dos presidentes da República Velha: era uma “questão de polícia”.
Com o crash da Bolsa de Nova Iorque, em 1929, e a subsequente Grande Depressão, a economia brasileira foi severamente impactada, principalmente pela queda dos preços internacionais do café e pelo colapso do crédito comercial. Graças a medidas de autoproteção (que foram capazes de evitar a falência completa dos cafeicultores) e um incipiente processo de diversificação industrial, durante a década de 1930, o Brasil experimentou aquilo que Celso Furtado havia chamado de “deslocamento do eixo dinâmico” da economia – ou seja, as atividades domésticas foram gradualmente assumindo o papel central na atividade econômica. Durante a Era Vargas (1930-1954), cuja origem está ligada à inadequação e aos vícios do regime anterior, este processo foi intensificado, definindo o início do período “nacional-desenvolvimentista” na história brasileira – que perduraria, com importantes reconfigurações,até a década de 1980. Juntamente com o lançamento da indústria de base no país e a criação de toda a institucionalidade do Estado brasileiro, a Era Vargas também foi marcada pela criação de algumas medidas de proteção social, notadamente, a consolidação da legislação trabalhista e a criação do salário mínimo.
A ERA VARGAS
Longe de representar uma estratégia de desenvolvimento inclusivo (até mesmo porque os incipientes direitos sociais eram prerrogativas apenas dos trabalhadores urbanos e nada foi tentado em termos de reforma agrária), tais iniciativas foram de grande importância para o aprofundamento do mercado interno e para o aumento do multiplicador da economia. Após o esforço de industrialização, concentrado.
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Governo de kubitschek(1956-1961) |
No governo de kubitschek (1956-1961) e seu Plano de Metas – pelo qual a integração do território, o setor de energia e a indústria de bens de consumo duráveis deram um “salto à frente” sem grandes alterações no campo social, o início da década de 1960 foi marcado por uma disputa decisiva entre diferentes projetos sociais e econômicos na sociedade brasileira. O aprofundamento dos direitos sociais, defendidos sob a bandeira das “reformas de base” pelos movimentos sociais e pelo governo Goulart, acabou derrotado pelo Golpe de 1964, e no que se refere aos temas tratados no presente artigo este é seu principal significado: durante a ditadura, que durou as duas décadas seguintes, teve lugar um aprofundamento da estratégia de diversificação estrutural por meio do planejamento e intervenção estatais, tipicamente “desenvolvimentistas”; em termos sociais, o período foi de regressão e conservadorismo. Como ilustrado na Figura 1, uma relação direta entre crescimento e concentração é o grande “fato estilizado”da economia brasileira durante os anos 1960 e 1970.
Figura 1: Crescimento econômico e distribuição de renda no Brasil (1960-1990). Fonte:Elaboração própria, a partir de dados do Ipeadata, IBGE e Neri3.*As taxas de crescimento são médias dos 10 anos anteriores.3 NERI, M. (org.).
De volta ao país do futuro: projeções, crise europeia e a nova classemédia.
Rio de Janeiro: FGV/CPS, 2012.269 Rev. Inst. Estud. Bras., São Paulo, n. 58, p. 263-288, jun. 2014
Esta relação foi objeto de intensos debates acadêmicos entre intelectuais na época, com destaque para a controvérsia entre os dois maiores economistas heterodoxos brasileiros: Celso Furtado e Maria da Conceição Tavares.
Ao incorporarem a questão da distribuição na análise sobre o estilo de desenvolvimento (e as possibilidades de crescimento),tais autores jogam luz sobre a questão econômica, que aqui se quer privilegiar, na Era Lula.
Para Furtado (4), a industrialização brasileira era, em si, um processo intimamente relacionado à histórica concentração de renda: movida pela modernização dos padrões de consumo da parcela mais abastada da população e incorporando progresso técnico gerados no exterior, ao mesmo tempo era produto e perpetuava a desigualdade.
Mais importante, a estreiteza do mercado consumidor (e bens de capital) e a redução progressiva na relação produto-capital (decorrente desta concentração de investimento - investimentos no setor duráveis), levariam à tendência de estagnação da economia brasileira – o que era plausível no início dos anos 1960.
MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES. |
Tavares e Serra(5), com o benefício do tempo transcorrido (e da aceleração do crescimento ao invés da estagnação prevista), desenvolvem explicação contrária: a concentração de renda não só não era um obstáculo ao crescimento, mas poderia ser usada para promovê-lo. Segundo eles, havia sido a falta de financiamento para o investimento e a falta de demanda para torná-lo rentável a causa da perda de fôlego do crescimento após o Plano de Metas.
A alteração regressiva na distribuição da renda, privilegiando as camadas médias e altas da renda – aumentando assim a demanda por bens duráveis – e uma compressão dos salários de trabalhadores de baixa qualificação – elevando os lucros, acabou sendo o caminho aberto a partir das reformas e políticas do Programa de Ação Econômica do Governo (1964-1966) para enfrentar o problema da estagnação.
De fato, e sem deixar de reconhecer os méritos e o pioneirismo na análise de Furtado, o Brasil conseguiu conciliar alto crescimento (especialmente durante o “milagre” de 1968 a 1973) com concentração de renda. O “milagre”, como costuma acontecer, não durou para sempre. O que era uma economia muito dinâmica, embora desigual ou (4) dinâmica porque desigual, como explicado por Tavares e seus seguidores), transformou-se em estagnação e instabilidade na década de 1980, com prejuízos sociais adicionais.
(4) Furtado , C. Desarrollo y estancamiento en América Latina: un enfoque estructuralista.In: A. Bianchi (org.). América Latina: Ensayos de Interpretación Económica.Santiago: Ed. Universitária, 1966.5 Tavares , M. C.; Serra , J. Más allá del estancamiento: una discusión sobre el estilode desarollo reciente de Brasil. Revista Latino-Americana de Ciencias Sociales,Manizales, n. 1-2, p. 2-38, 1971.270 Rev. Inst. Estud. Bras., São Paulo, n. 58, p. 263-288, jun. 2014
A última grande tentativa organizada do regime militar de planejar o desenvolvimento brasileiro e vencer a distância que separa o país das grandes potências ( o II PND, lançado em 1974, em meio a um ambiente internacional já em deterioração ) foi capaz de promover mudanças importantes na estrutura produtiva, ainda que com ritmo e alcance muito aquém do planejado diante das dificuldades externas. No que se refere às desigualdades sociais e às políticas para atacá-las, não se avançou além dos diagnósticos e propostas.
O fardo da dívida externa excessiva, crescente desde o início dos anos 1970 e em muito ampliada com os projetos do II PND, e a falta de mecanismos internos para financiá-los, combinado com a escassez de financiamento externo após o aumento nas taxas de juros dos EUA em 1979, impôs muitas dificuldades e uma organização perversa para a economia brasileira durante a chamada “década perdida”.(6)
Era o fim do “nacional-desenvolvimentismo”, sem qualquer substituto consistente. De particular importância, foi a crise fiscal e financeira do estado, uma consequência da “nacionalização” da dívida externa, que impediu qualquer possibilidade de políticas ativas, orientadas para objetivos sociais.
Taxas de crescimento baixas e voláteis, inflação alta e aceleracionista (com efeitos piores sobre os mais pobres, incapazes de preservar a sua renda e riqueza), e um estado geral de instabilidade macroeconômica foram as principais consequências da restrição externa e da necessidade de produzir vastos superavits comerciais para servir à dívida externa.
Nessa década “perdida”, a obrigatoriedade do ajuste externo era assim incompatível com o crescimento baseado no mercado doméstico e com a distribuição de renda (7). A crise final do “nacional-desenvolvimentismo”, em termos econômicos, também teve grande relevância política, já que foi decisiva para a erosão do apoio ao governo militar. Mesmo sem eleições diretas (retomadas apenas em 1989), a nova Constituição, promulgada em 1988 foi um símbolo importante da redemocratização..
(6) Sobre o II PND, ver o posicionamento crítico de Lessa , C. Visão Crítica do II PND.Revista Tibiriçá, São Paulo, n.6, jan./mar. 1977; e o capítulo I de CARNEIRO, R. deM. Desenvolvimento em crise: a economia brasileira no ultimo quarto do século XX.São Paulo: Editora Unesp, 2002.
Para o endividamento externo e suas motivações, a referência é Cruz, P. D. Dívida externa e política econômica: a experiência brasileira dos anos setenta. São Paulo: Brasiliense, 1984.7 Capítulo 4 de CARNEIRO, R. de M. op. cit.; Batista Jr., P. N. Formação de capital e transferência de recursos ao exterior. Revista de Economia Política, São Paulo,v. 7, n. 1, p. 10-27, jan./mar. 1987.271 Rev. Inst. Estud. Bras., São Paulo, n. 58, p. 263-288, jun. 2014
Em seus capítulos sociais, criaram-se importantes mecanismos de proteção social, principalmente no que tange à Previdência Social (estendida aos trabalhadores rurais, mesmo sem contribuições anteriores), à saúde pública (tornada universal e gratuita, com a criação do SUS) e aos direitos trabalhistas (férias remuneradas, seguro-desemprego, direito de greve etc.).
Mesmo considerando os graves problemas de financiamento(que se explicitariam nos anos posteriores), as conquistas constitucionais foram as sementes do que mais próximo se chegou de um “Estado de Bem Estar Social” no Brasil – justificando não apenas o apelido de “Constituição Cidadã” para a Carta de 1988, mas também a feroz oposição a ela em círculos liberais.
Graças à renegociação das dívidas externas sob o “Plano Brady” (no caso brasileiro, concluído apenas em 1994), às mudanças nas relações financeiras internacionais que caracterizam a globalização financeira e às taxas de juros baixas nas economias centrais no início da década de 1990, uma nova fase de abundância de financiamento externo se apresenta para a América Latina naquele momento, encerrando a “década perdida” e abrindo caminho para uma nova estratégia de desenvolvimento. Consolidada sob o chamado “Consenso de Washington”, a agenda das reformas liberalizantes era, nesta parte do mundo, uma resposta à crise do modelo anterior e esteve centrada na redução do papel do estado no processo de desenvolvimento. No Brasil, tal agenda – lançada pelo abreviado governo Collor –foi consolidada no período FHC (1995-2002), e em muito facilitada pelo apoio político conquistado com o sucesso no combate à alta inflação por meio do Plano Real. A diminuição do índice de preços oficial (que, após um pico de quase 2500% em 1993, caiu para 22,4%em 1995, 9,6% em 1996 e 5,2% em 1997) resulta imediatamente em uma sensível melhoria no rendimento real dos mais pobres.
A BREVE E INDESEJADA ERA COLLOR. |
Na realidade, os ganhos distributivos da tentativa anterior (e rapidamente fracassada) para controlar a inflação, o Plano Collor(1990), foram maiores (ver Figura 1). Isso se deu principalmente porque o plano foi capaz de interromper uma série de mecanismos, desenvolvidos durante a década de 1980, para proteger a renda real da inflação acelerada. Essas ferramentas de defesa eram distribuídas de forma desigual (dependendo do acesso a contas bancárias e do próprio patamar de rendimentos), de modo que não só a inflação em si era perversa, mas também seus efeitos sociais.
Esta dinâmica foi responsável pela elevação na concentração de renda durante a segunda metade da década de 1980, e pela a estabilidade (com uma ligeira diminuição) do Índice de Gini em torno de 0,6 a partir de 1995, apenas recuperando a situação extremamente injusta de uma década antes (Figura 2).
272 Rev. Inst. Estud. Bras., São Paulo, n. 58, p. 263-288, jun. 2014
Seja como for, após a estabilização, em 1994, durante algum tempo a expansão do mercado interno (também alimentado pela expansão do crédito) parecia assumir o papel principal. Figura 2:
Crescimento econômico e distribuição de renda no Brasil (1990-2000).Fonte: Elaboração própria, a partir de dados do Ipeadata e IBGE.
Entretanto, a dinâmica da economia “modernizada” não foi particularmente favorável ao crescimento durante os anos que se seguiram, nem esteve particularmente orientada para o mercado interno ou para o desenvolvimento social. Devido à abertura comercial e financeira às privatizações e a própria atração de investimentos estrangeiros diretos, o nível de concorrência internacional foi elevado no espaço econômico doméstico. Com a contribuição da forte apreciação da taxa de câmbio, esse processo foi longe demais e tornou-se improdutivo em termos de ganhos de eficiência, resultando em falências, desemprego e desnacionalização.
A regressão da estrutura produtiva também foi acompanhada pela deterioração das finanças públicas (prejudicada pela estratégia macroeconômica de valorização cambial e acumulação de reservas internacionais) e pela inadequação de um sistema tributário complexo e regressivo,que assistiu a um forte aumento da carga tributária total. Para piorar,a economia esteve durante todo o período sujeita à volatilidade dos fluxos internacionais de capital e testemunhou três episódios de crise cambial – 1998-1999, 2001 e 2002 – que foram enfrentadas seguindo o receituário ortodoxo tradicional: assistência de liquidez do FMI, cortes de gastos públicos e elevação nas taxas de juros.
273 Rev. Inst. Estud. Bras., São Paulo, n. 58, p. 263-288, jun. 2014
O ambiente resultante de todos estes processos era estável em termos de inflação (para os padrões brasileiros), mas muito instáveis em um sentido macroeconômico mais amplo: crescimento baixo e volátil (a média anual foi de apenas 2,3% entre 1995 e 2002), altas taxas de juros (com picos de quase 50%, mesmo após o controle da inflação o nível nominal da taxa de política nunca caiu a menos de 15% ao ano), taxa de câmbio oscilante e, particularmente prejudicial do ponto de vista social, alto desemprego (que aumentou continuamente durante a década de 1990 e atingiu 20% da força de trabalho em 2002 e 2003). Neste contexto, o ritmo muito modesto da queda no Índice de Gini, após os ganhos iniciais com a estabilização de preços(Figura 2), não surpreende. Em suma, esta breve retrospectiva sugere que, ao longo da história brasileira, a relação entre as dimensões sociais e econômicas de desenvolvimento nunca foi o elemento central da estratégia de crescimento.
Partindo da herança colonial, passando pelo desenvolvimentismo com forte presença estatal e chegando à agenda liberal dos anos 1990, o atendimento das necessidades (mesmo as mais básicas) da maioria da população sempre foi um objetivo secundário. Obviamente, nessa trajetória, há alguns momentos muito importantes em termos de avanços institucionais (os direitos trabalhistas e o salário mínimo durante a Era Vargas; o capítulo social da Constituição de 1988) e ganhos concretos (especialmente a redução da desigualdade na sequência da queda da taxa de inflação entre 1990 e 1994).
Mas inegável é o fato de que o Brasil iniciou o século XXI como uma das sociedades mais desiguais do mundo, apesar dos avanços democráticos e econômicos nas décadas anteriores. É neste campo que vai se localizar a principal questão econômica (e social) da Era Lula.
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Mudanças e otimismo: distribuição de renda e retomada do crescimento no governo Lula (2003-2010)
Em termos teóricos, a proposição de uma associação virtuosa entre crescimento econômico e progresso social não é novidade mesmo levando-se em conta a natureza intrinsecamente excludente do capitalismo.
As experiências social-democratas da Europa Ocidental durante a “Era de Ouro” de Bretton Woods são o melhor exemplo histórico de uma estratégia em que a melhoria das condições de vida (emprego, salários, direitos sociais, sistemas previdenciários e serviços públicos) não se opõe à acumulação privada de capital e ao crescimento econômico. Pelo contrário, ambas as dimensões se auto reforçavam naquele arranjo extraordinário em termos históricos. Nada de semelhante ocorreu no Brasil nos anos 1950 e 1960:
Nem o contexto histórico da Guerra Fria e a ameaça comunista, nem a construção de qualquer coisa próxima a um Estado de Bem Estar Social.
Como já comentado, uma versão mais fraca de um sistema de proteção social no Brasil foi produto dos esforços de redemocratização somente no final dos anos 1980, e mesmo assim enfrentou (na verdade ainda enfrenta) uma série de dificuldades operacionais e de financiamento, quando colocado em prática.
Mas certamente as lições do mundo avançado iluminavam as propostas dos legisladores e policy-makers brasileiros no período, e também serviam de inspiração para alguns intelectuais e políticos progressistas.
Entre essas ideias, se encontra uma simples lição macroeconômica, relacionada com as fontes e o tamanho da demanda agregada: O aumento do mercado – em uma sociedade na qual grande parte da população que tinha sido, historicamente, excluída do consumo de uma vasta gama de produtos, poderia ser um poderoso motor econômico.
Mesmo que tal exclusão não tenha sido determinante para uma tendência de estagnação durante as décadas de 1960 e 1970, sua superação não deixou de ser vista como uma grande fonte potencial de crescimento, pelo menos por alguns economistas heterodoxos.De acordo com Bielschowsky, a ideia de um mercado de consumo de massa, a ser explorada por uma estrutura de oferta específica, foi tratada academicamente pela primeira vez por Castro (9), mas era parte importante do ideário econômico do Partido dos Trabalhadores desde a sua fundação em 1980.
O modelo de desenvolvimento proposto por Lula e Dilma
O objetivo maior da estratégia de
desenvolvimento socioeconômico de longo prazo dos dois governos, e
inédito no Brasil, tem sido a inclusão e a proteção social, com radical
redução da pobreza e igualdade de oportunidades para todos
A estratégia foi enunciada na campanha eleitoral de 2002, e reiterada em uma série de documentos e pronunciamentos oficiais ao longo dos três mandatos: crescimento com baixa inflação e redistribuição de renda, associado ao modelo de consumo de massa.
No “Programa de Governo 2002”, da Coligação Lula Presidente, as linhas do novo modelo estavam assim anunciadas:
“(…) O motor básico do sistema é a ampliação do emprego e da renda per capita e, consequentemente, da massa salarial que conformará o assim chamado mercado interno de massas. O crescimento sustentado a médio e longo prazo resultará da ampliação dos investimentos na infraestrutura econômica e social e nos setores capazes de reduzir a vulnerabilidade externa, junto com políticas de distribuição de renda”.
O objetivo maior dessa estratégia, e inédito no Brasil, tem sido a inclusão e a proteção social, com radical redução da pobreza e igualdade de oportunidades para todos.
E sua sustentação econômica em médio e longo prazo reside na continuidade da expansão dos investimentos em três frentes de expansão: investimentos em produção e consumo de massa, investimentos em infraestrutura e investimentos na produção de bens e serviços intensivos em recursos naturais.
A desaceleração recente nessas frentes de expansão não justifica que ignoremos enormes avanços já alcançados, e tampouco o potencial de desenvolvimento futuro contido nelas.
Os contundentes indicadores apresentados a seguir não deixam margem a dúvidas quanto ao êxito alcançado pelas políticas de governo nos dois mandatos de Lula e no de Dilma.
A Tabela 1 mostra uma impressionante lista de indicadores do êxito social, em matéria de trabalho e renda, transferência e assistência, distribuição de renda e redução da pobreza, evidenciando um novo salto a cada um dos três mandatos.
ATabela 2 complementa a anterior com dados de avanços importantes em matéria de educação, saúde, desenvolvimento urbano e desenvolvimento agrário.
Bielschows ky, R. Estratégia de desenvolvimento e as três frentes de expansãono Brasil: um desenho conceitual. Economia e Sociedade, Campinas, v. 21, n. especial,p. 729-747, 2012. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-061820120004000029 Castro , A. B. O Brasil a caminho do mercado de consumo de massa. In: REIS VELLOSO,J. P. (coord.). As perspectivas do Brasil e o Novo Governo. São Paulo: Nobel, 1990.275 Rev. Inst. Estud. Bras., São Paulo, n. 58, p. 263-288, jun. 2014
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