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Uma tempestade financeira global está se armando, num horizonte não distante. A revista Economist dedica
a capa desta semana à quebra dos bancos italianos – a começar pelo
Monte dei Paschi, de Siena, a instituição financeira mais antiga do
mundo em funcionamento. A crise tem também um viés político. A falência
dos bancos italianos, que ocorrerá fatalmente, caso não haja
intervenção, afetaria milhões de poupadores. Mas a opinião pública
europeia – especialmente nos países do Norte – rejeita novas ações de
salvamento das finanças com dinheiro público.
Reuniões de urgência estão sendo realizadas nestes dias. O peso da
economia italiana – a quarta maior da Europa – poderia tornar o país
epicentro de um tremor maior. E a situação da Europa já não é fácil. Até
o poderoso – e sempre draconiano – Deutsche Bank, de Frankfurt, é hoje
considerado pouco seguro. Sofreu grandes prejuízos, demitiu milhares de
trabalhadores, está extremamente “alavancado” – ou seja, dependente de
capitais de terceiros. Os gráficos mostram que seu valor de mercado é
agora apenas um décimo do que foi antes da crise. A situação agravou-se
após a sensação de incerteza desencadeada pelo Brexit – a saída da
Grã-Bretanha da União Europeia.
Mas por que a economia global voltou a ficar ameaçada? Tudo indica
que as causas estão na desigualdade crescente – esta marca da qual o
capitalismo contemporâneo não parece capaz de se livrar. Na verdade, as
saídas adotadas diante da crise de 2008 são a gasolina que está
alimentando o incêndio de agora.
A partir de 2009, houve duas respostas à crise. A primeira foram as
mal-chamadas políticas de “austeridade”, que começaram exatamente na
Europa. Em quase todos os países, houve ataques aos direitos sociais, às
aposentadorias e em especial aos serviços públicos. As sociedades
protestaram, mas não foram ouvidas. A democracia está esvaziada. A
diminuição abrupta do gasto estatal provocou desemprego e recessão.
A segunda resposta foram as políticas em favor dos bancos e à
aristocracia financeira. Primeiro, os Estados destinaram montanhas de
dinheiro – trilhões de dólares – para salvar instituições falidas.
Depois, vieram as ações de quantitative easing. Os bancos
centrais dos Estados Unidos, da Europa e do Japão tentaram estimular
suas economias imprimindo outros trilhões de dólares. Mas este dinheiro
não fluiu para as populações. Foi usado para comprar antecipadamente
títulos da dívida pública, possuídos pelos mais ricos. Ou seja, foram
trilhões de dólares novamente destinados ao chamado 1%.
Este dinheiro correu o mundo, de modo especulativo. Os muito ricos
são incapazes de consumir o que ganham. Em vez disso, despejam o
dinheiro em ações, moedas, mercados de futuros de commodities, imóveis. O
quantitative easing serviu, por exemplo, para elevar os preços dos alimentos, da casa própria, do aluguel.
As populações perderam, portanto, duas vezes. De um lado, com o corte
de direitos sociais, de serviços públicos e com o desemprego. De outro,
com a inflação de alguns bens e serviços que pesam no orçamento.
Com aperto no consumo, as economias sofrem. Segundo dados recentes do
FMI, o crescimento global, que havia sido de 3,7% ao ano, entre 2000 e
2010, caiu para 2,4% ao ano, a partir de 2012. Esta média é enganosa. A
China, por exemplo, desacelerou mas continua crescendo mais de 7%. Já o
Brasil sofre, há dois anos, a recessão mais profunda de sua história.
Há, em todo o mundo, cada vez mais gente morando na rua, desemprego,
empresas quebrando.
Há também, em consequência, uma explosão de dívidas, escancarada num artigo recente do Los Angeles Times.
Primeiro, a dívida dos governos, devido ao pagamento de juros. Ela
dobrou, desde 2008, e chegou agora a 59 trilhões de dólares.
Mas também explodiu a dívida dos consumidores, das empresas e dos
próprios bancos. Ela é hoje de R$ 199 trilhões, segundo um estudo do
Instituto McKinsey. Veja o caso dos Estados Unidos, examinado em
detalhes pelo Los Angeles Times. As dívidas com hipotecas caíram um
pouco, a partir da crise. Mas explodiram, por exemplo, os débitos dos
estudantes, com mensalidades escolares.
Para este cenário, há duas saídas. O primeiro é o dos mercados. No caso italiano, o mais urgente, a revista Economist está
alarmada. Diz que uma quebra, logo após o Brexit, poderia provocar a
desintegração do euro. E sugere: 1. Oferecer, em caráter de emergência,
mais dinheiro público aos bancos em dificuldades; 2. Exigir, como
contrapartida, mais concentração de riquezas – com compra dos bancos
regionais pelos maiores – e mais políticas de “austeridade”.
No sentido oposto, a crise oferece uma oportunidade de rever e
renovar os programas da esquerda para superar o capitalismo. Um ponto
muito negligenciado nas abordagens tradicionais são as finanças, seu
papel e as alternativas. No capitalismo contemporâneo, é também nesta
esfera – muito mais do que nas fábricas – que se gera mais-valia, se
acumula riquezas, se constrói desigualdade. Um programa de
transformações atual não pode negligenciar a necessidade de construir um
novo sistema financeiro e também monetário.
Os trilhões gastos pelo Estado para salvar bancos, e em seguida para promover o quantitative easing
expõem o caráter político do dinheiro. É preciso dessacralizá-lo. Ele
não é uma mercadoria padrão, neutra e intocável Ele é, ao contrário, uma
relação política.
Assim como os governos emitiram verdadeiras montanhas de dinheiro em
favor dos bancos, eles teriam todos os meios necessários para fazê-lo em
favor das sociedades. Um caminho muito concreto para isso é criar
políticas consistentes de Renda Cidadã, por meio das quais cada ser
humano – pela simples condição de ser humano – recebe um valor mensal
suficiente para uma vida frugal, porém digna. É tão possível quanto dar
dinheiro aos bancos. É muito muito mais justo ética e socialmente. E
movimenta a economia, porque é dinheiro gasto e não entesourado ou
destinado à especulação. Um cálculo do site Swiss Info, ainda em 2009,
mostrou que só nos primeiros meses de socorro aos bancos, os Estados
gastaram 10 trilhões de dólares. Seria suficiente, diz o estudo, para
pagar a cada habitante do planeta US 1422 – aproximadamente R$ 4,5 mil.
Uma segunda maneira é promover o que Jeremy Corbyn, o ousado líder do Partido Trabalhista britânico, chamou de Quantitative Easing for People. Diz
Corbyn: ao invés de despejar dinheiro nos bancos, por que não
alimentar, por exemplo, os sistemas públicos de Educação, Saúde,
construção de moradia e outros?
Infelizmente, tanto estas informações sobre a crise bancária e suas
causas quanto o debate sobre as alternativas estão muito atrasados no
Brasil. Para a mídia, o assunto único é a corrupção – os grandes temas
globais são um universo paralelo. Para parte da esquerda, agenda
política ainda se limita às disputas institucionais por um Estado que,
como em todo o mundo, é uma máquina de favorecer a aristocracia
financeira. Mas se outro mundo é possível, talvez o sejam também outro
debate público – e outra esquerda…