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Uma urgente e efetiva reforma da
Previdência que estabeleça uma idade mínima para a aposentadoria, pelo
menos 65 anos para os homens e 60 para as mulheres, jamais adotar políticas voluntaristas, mesmo em nome do combate aos desníveis sociais, redução do tamanho do estado por meio de privatizações. |
Julia Duailibi
Julia Duailibi é repórter de
piauí. Trabalhou na TV Bandeirantes, na
Folha de S.Paulo, na
Veja e no
Estado de S. Paulo.
Dilma Rousseff estava furiosa. Dava
para ouvir sua voz do lado de fora do gabinete presidencial, no 3º andar
do Palácio do Planalto. “Venha para cá!”, ordenou, por telefone, ao
ministro José Eduardo Cardozo, que estava no Palácio da Justiça, a
poucos metros dali. “Parece que o rapaz vai aceitar o pedido”,
prosseguiu, em ligação ao advogado-geral da União, Luís Inácio Adams. O
“rapaz”, a quem Dilma se recusava a chamar pelo nome, era o presidente
da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, do PMDB fluminense.
No meio da tarde daquela quarta-feira, dia 2 de dezembro, a
presidente soubera por seus ministros que Cunha acataria um dos 34
pedidos de impeachment que haviam chegado à Câmara. A informação fora
confirmada pelo vice-presidente, Michel Temer, que falara ao telefone
com o presidente da Câmara. Tal fato só contava com dois precedentes na
história republicana: em 1954, com Getúlio Vargas, que derrubou o
impeachment no plenário da Câmara, e em 1992, com Fernando Collor, que
renunciou depois de o processo avançar para o Senado.
Por volta das seis da tarde, o “rapaz” fez seu anúncio ao país. Dilma
acompanhou as declarações pela televisão de seu gabinete. Achava uma
ironia que ele, acusado de manter contas no exterior com dinheiro de
corrupção na Petrobras, fosse o patrocinador do processo que pedia a sua
cassação. Paradoxalmente, a decisão de Cunha também trazia alívio.
Desde que Dilma vencera a eleição, em outubro de 2014, na disputa mais
acirrada desde a redemocratização, quando derrotou o tucano Aécio Neves
por pouco mais de 3 milhões de votos, o impeachment rondava o Planalto
como uma assombração. A partir daquele momento, era um fato a ser
enfrentado.
A presidente abaixou o tom e começou a pensar no comunicado que faria
ao país. “Quero algo forte!” Cardozo tomou a frente do processo e,
sentado à mesa de reuniões, esboçou num laptop o pronunciamento. Seria
um embate de biografias. “Não paira contra mim nenhuma suspeita de
desvio de dinheiro público.” A presidente queria que sua fala fosse ao
ar, ao vivo, no Jornal Nacional. Na antessala do gabinete, duas
secretárias começaram a ligar para ministros de diferentes partidos,
convocando-os para o discurso. Dilma faria uma demonstração de força
suprapartidária. “Ministro, é para chamar o vice-presidente?”, indagou
uma das secretárias ao petista Jaques Wagner, ministro-chefe da Casa
Civil. “Não. Deixe o vice-presidente lá no Jaburu. É muito longe. Não
vai dar tempo de ele chegar aqui”, respondeu, com sua fala mansa,
carregada no sotaque baiano. O Palácio do Jaburu, residência oficial do
vice, fica a menos de cinco minutos de carro do Planalto. Wagner, na
realidade, já sabia que Temer não queria participar do embate de Dilma
contra Cunha. O ministro o havia consultado pouco antes. Temer preferiu
assistir à fala da presidente pela tevê.
Dois dias antes, na segunda-feira,
dia 30 de novembro, o presidente da Câmara fora almoçar com Michel Temer
no Jaburu. Lá, contou que negociava um armistício com o governo, com
quem estava rompido desde julho. Em depoimento a seus pares na Comissão
Parlamentar de Inquérito da Petrobras, em março, Cunha dissera não ter
contas no exterior. Enrolou-se depois que o procurador-geral da
República, Rodrigo Janot, pediu a abertura de investigação contra ele no
Supremo Tribunal Federal, anexando material que comprovaria a
existência das contas. Cunha declarou ter visto o dedo do Planalto por
trás da denúncia, que pode resultar na cassação de seu mandato. Em
entrevistas, passou a dizer que não era o dono das contas, mas
“usufrutuário”.
Durante o almoço, Cunha disse a Temer que escaparia do processo no
Conselho de Ética. Tinha a seu favor os três votos do PT, justamente os
fiéis da balança. Em troca, sentaria em cima do impeachment e ajudaria o
Planalto a emplacar sua agenda de votações, que incluía a tramitação da
Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeiras, a CPMF. Jaques
Wagner era o fiador da negociação, defendida também pelo ex-presidente
Luís Inácio Lula da Silva, a quem o ministro é muito ligado. Dilma fazia
ressalvas: “Quem cede a chantagista uma vez tem que ceder sempre.”
Achava que cedo ou tarde ele deflagraria o processo contra ela. Até lá,
porém, o Palácio não deveria enfrentá-lo. A prioridade era outra: correr
e aprovar no Congresso a lei da nova meta fiscal, que autorizava o
governo a fechar o ano de 2015 com um rombo de 119,9 bilhões de reais.
Enfraqueciam-se com a nova meta os argumentos de que Dilma teria
incorrido em crime ao não cumprir a Lei de Responsabilidade Fiscal. Sem
crime de responsabilidade, o impeachment ficava mais difícil.
Temer ouviu em silêncio e seguiu o estilo discreto que até então
marcara seus anos na Vice-Presidência. Não insuflou Cunha, mas também
não o desmotivou: “Faça o que achar melhor”, disse, lavando as mãos.
Na véspera, dia 1º de dezembro, o
presidente do PT, Rui Falcão, almoçava na churrascaria BSB Grill – na
Asa Sul, em Brasília – quando viu na tevê do restaurante a imagem do
deputado paraense Zé Geraldo, um dos três petistas com assento no
Conselho de Ética. Pediu ao garçom que aumentasse o volume. “Olha, não
dá para esconder que estamos com a faca no pescoço porque Cunha tem a
arma do impeachment e pode, sim, colocar isso em prática, o que não é
bom para o Brasil”, dizia o parlamentar, sugerindo que o partido
facilitasse a vida do presidente da Câmara.
Falcão voltou para a sede do PT, também na Asa Sul, e postou uma
mensagem no Twitter que ia justamente na direção contrária. No post,
declarava estar seguro de que os três deputados do PT no Conselho
aceitariam o processo contra Cunha. Ligou então para Zé Geraldo. “Que
merda é essa?”, antecipou-se o parlamentar sobre o tuíte do presidente
petista. “Merda é essa sua entrevista. Tá vacilando?”, respondeu Falcão.
Zé Geraldo e os dois outros deputados petistas reclamavam de falta de
orientação do partido. “A orientação é votar contra Cunha!”, respondeu o
presidente do PT.
O partido vivia a maior crise de sua história. Não aguentaria o custo
de um acordo com Cunha. O governo, no entanto, também vivia a sua pior
crise, e Cunha estava na iminência de aprofundá-la.
No dia seguinte, o Conselho de Ética se reuniria no começo da tarde
para decidir o destino de Cunha. A bancada do PT, em sua maioria,
pressionava a direção para anunciar a posição do partido, contra o
peemedebista, antes da sessão. O Planalto, porém, segurava no braço. Ao
meio-dia, o Congresso começaria a votar a nova meta fiscal. Falcão pediu
ao deputado Sibá Machado, líder do PT na Câmara, que reunisse a
bancada. Sibá reagiu: “A gente reúne depois da sessão do Congresso.”
Falcão foi inflexível: “Se você não reunir agora, eles vão fazer a
reunião, e você estará destituído na prática.” Ao saber da movimentação
no PT, Jaques Wagner disparou telefonemas, preocupado com o destino do
governo.
O PT se reuniu e anunciou que seus três votos no Conselho de Ética
eram contra Cunha. Pronto. A margem para negociação do impeachment
diminuíra substancialmente. E diminuiria ainda mais. No Congresso, com a
ajuda do presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), a nova meta
fiscal acabou aprovada. Os parlamentares autorizavam o rombo de 119,9
bilhões de reais no orçamento de 2015. Com duas derrotas na cabeça,
Cunha trancou-se em seu gabinete. Só saiu de lá para anunciar o
acolhimento do impeachment. Do Planalto, Jaques Wagner desabafou: “É
melhor um final trágico que uma tragédia sem fim.” A partir daquele
momento, a guerra mudou de campo. Atravessou a Praça dos Três Poderes e foi para o STF, onde a decisão do presidente da Câmara passou a ser questionada pelo governo.
“Há muito tempo fazemos a separação do que é partido e do que é
governo”, declarou Falcão, na sede do PT, no Centro de São Paulo, em
novembro. “Partido tem uma perspectiva de longuíssimo prazo, e o governo
é marcado pela alternância eventual.” Falcão falava sobre divergências
entre os interesses do PT e do Planalto, como as medidas do ajuste
fiscal. Com a ação do PT e a consequente reação de Cunha ao acatar o
pedido de impeachment, essas divergências pareceram ainda maiores.
Voltei a procurá-lo em janeiro. O presidente defendeu a decisão do
partido. “Se nós não temos 171 deputados para impedir o impeachment,
como você governa quatro anos? Quer dizer, você vende toda a sua
história, mancha sua reputação e, no final, você não vai ser
‘impeachado’. Vai ser enxotado, carregando ainda a chaga de estar junto
com Eduardo Cunha”, afirmou, numa referência aos votos de um terço dos
513 deputados, necessários para enterrar o processo de impeachment na
Câmara.
O caminho do impeachment começou a
ser trilhado quando Cunha se elegeu presidente da Casa, em fevereiro do
ano passado. Meses antes, tão logo Dilma foi reeleita, Temer a procurou
para conversar sobre o que estava em curso no Congresso. Candidato à
presidência da Câmara, Cunha era então líder do PMDB e havia emparedado o
governo desde que formara, em fevereiro de 2014, o “blocão”, com oito
partidos da base aliada e mais de 250 deputados. Temer, à época, tinha
receio de que o fortalecimento excessivo de Cunha o enfraquecesse dentro
do PMDB, do qual é presidente desde o remoto ano de 2001. Apesar dos
sinais, Dilma não sentia urgência em conter a movimentação. “Não quero
ver isso agora. Quero montar o governo.”
A candidatura de Cunha se consolidou. Sua força, dizia-se à boca
pequena em Brasília, vinha de ajuda às campanhas de, ao menos, 100
deputados. O PT não quis acordo e lançou a candidatura do paulista
Arlindo Chinaglia. Apenas às vésperas da eleição, quando a derrota era
certa, o governo correu para tentar uma composição. Tarde demais. “Se eu
faço acordo agora, perco a eleição”, disse Cunha a um deputado. Surfava
no sentimento antipetista do novo Congresso e prometia à oposição
espaço na mesa diretora da Câmara ou em comissões cobiçadas. Elegeu-se
em primeiro turno, com 267 votos, impondo um vexame histórico ao
Planalto. Nem a bancada petista conseguiu se blindar da influência do
peemedebista. Estima-se que ele tenha contado com quinze votos do PT.
Falcão diz não se arrepender do enfrentamento. Avalia que, mesmo se
tivesse recebido apoio do PT, Cunha teria rompido com o governo quando
se enrolou na Lava Jato. “Ele já vinha operando contra nós desde a
liderança do PMDB. Vinha seduzindo gente e seduziu gente na eleição.
Daria para fazer acordo se ele fosse um político normal, mas ele não era
confiável”, comentou o presidente do PT. O deputado Pepe Vargas, do
PT gaúcho, à época ministro das Relações Institucionais, admite que o
governo avaliou mal o processo. “Imaginamos que era possível levar a
candidatura Chinaglia para o segundo turno. Foi um erro”, me disse em
novembro, em seu gabinete, na Câmara. “Mas não me arrependo um milímetro
da posição que tínhamos de evitar a candidatura do Cunha. Essa
candidatura se mostrou, sim, uma candidatura da oposição.”
A vitória de Cunha escancarou a debilidade política do governo, num
ambiente em que o Planalto já tinha de lidar com os efeitos da Lava Jato
e da crise econômica. Diante das evidências da incapacidade de
articulação de Dilma e seu entorno no Congresso, Lula assumiu o papel de
embaixador junto ao PMDB. Encontrou-se secretamente com Cunha num hotel
de Brasília, tomou café da manhã no Jaburu com Temer, Sarney e Renan,
defendeu um armistício com o presidente da Câmara e pregou maior
protagonismo do vice no governo. Numa conversa em São Paulo, chegou a
sondar Temer, sem sucesso, se aceitaria ocupar o Ministério da Justiça.
Em outra ocasião, durante um encontro com Dilma, no final de abril,
insistiu na necessidade de que ela melhorasse sua interlocução com o
maior partido da base e fez críticas severas a Aloizio Mercadante, então
ministro da Casa Civil, apontado como arrogante e de difícil trato
pelos peemedebistas.
Lula ouviu da presidente que ela se esforçaria. Dias depois, Dilma
deu carona a vários parlamentares no voo que a levou a Santa Catarina,
onde participaria do velório do senador Luiz Henrique, do PMDB.
Confinada em sua cabine durante todo o trajeto, chamou para uma conversa
apenas Renan Calheiros. Os demais políticos se sentiram desrespeitados.
Na volta, deram o troco disputando os assentos disponíveis no avião
reserva da Força Aérea Brasileira.
“Com Lula, sobrava disposição para o diálogo. Você vai para Mato
Grosso, lota o avião com deputados e conversa com os caras. Ter
dificuldade de lidar com esse tipo de gente pode até ser louvável. Mas é
um vício que custa mais caro depois. E, quando o governo fica fraco, é o
pior dos mundos. A faca dos que te sustentam cresce”, definiu o
ex-ministro Gilberto Carvalho, que foi chefe de gabinete de Lula e
ministro da Secretaria-Geral da Presidência no primeiro mandato de
Dilma. Reeleita, ela o deslocou para a presidência do Conselho Nacional
do Sesi (Serviço Social da Indústria), deixando-o convenientemente
distante do coração do poder.
Depois de viver, ao longo do primeiro mandato, um embate tácito com
setores do PT favoráveis ao “Volta, Lula”, Dilma resolveu governar a sua
maneira e com seu grupo, no qual Mercadante – que jamais foi ministro
de Lula – tinha assento preferencial. Ocupou o Ministério da Ciência e
Tecnologia e, a seguir, o da Educação. Quando chegou à Casa Civil, em
2014, já não era um ministro. Era o primeiro-ministro do governo.
Com a ajuda dele, Dilma estava decidida a diminuir a dependência do
governo em relação ao PMDB. Tentou promover o fortalecimento de outros
partidos, aliando-se a Cid Gomes, ex-governador do Ceará alçado ao
Ministério da Educação, e ao ex-prefeito Gilberto Kassab (PSD), titular
da Cidades. O plano não vingou. Cid Gomes (então no PROS e hoje no PDT)
caiu depois de um embate público com Eduardo Cunha. Kassab, apesar do
aval do Planalto, fracassou no esforço de criar um novo partido capaz de
ameaçar a hegemonia do PMDB. No auge da crise, em outubro de 2015, a
presidente teve que dar os anéis para não perder os dedos: aumentou a
participação do PMDB de seis para sete ministérios, entregando a Saúde,
uma das joias da coroa, que foi parar nas mãos de um deputado do segundo
escalão do partido. “Ela não consegue pôr em prática as coisas que
foram combinadas, tem enorme dificuldade. Até 2018, a gente vai ter que
monitorá-la”, conta um aliado de Lula sobre o “cansaço” do criador com a
criatura.
No bairro do Ipiranga, Zona Sul da
cidade de São Paulo, funciona o Instituto Lula. Além da fachada clara,
com vidro fumê, pouca coisa continua igual no casarão, que nos anos 90
foi sede do Instituto Cidadania. Desde que voltou a despachar de lá,
após deixar a Presidência em 2011, ele remodelou o local.
O chão frio e as cadeiras de metal e plástico da recepção deram lugar a
um mobiliário moderno, em tons pastel, e peças de design em madeira e
vidro. No meio da recepção, destaca-se um retrato de Lula sorrindo,
feito com confetes de papel de revista pelo artista plástico Vik Muniz.
Paulo Okamotto, o presidente do Instituto, é direto nas palavras.
Aliado de Lula há mais de trinta anos, não é raro que ele, quando fala,
reproduza o que pensa o amigo. Em outubro, encontrei-o na recepção do
Instituto, mas não fui convidada para entrar. Conversamos ali – ele
sentado numa poltrona de linho, eu num sofá confortável de camurça.
“Falta comprometer os caras. As pessoas não querem só cargo. Querem
participar do processo decisório, da política econômica”, comentou sobre
a relação com o PMDB. Okamotto acha que a personalidade da presidente
não ajuda. “Pelo perfil da Dilma, todo mundo tenta protegê-la e a isola.
O Mercadante é um político extraordinário, mas ele deveria ter ampliado
o núcleo dirigente do governo.” Perguntei por que Mercadante nunca foi
ministro de Lula. “Veja bem, o Mercadante nunca foi um cara próóóóximo
do Lula”, disse ele, com ênfase no ó, antes de prosseguir: “Ele
é amigo do Mercadante, gosta dele, tal, mas Lula gostava de ministros
que conversavam mais, que faziam mais política.” Tentou mudar o assunto e
soltou um sorriso malicioso. “Mas eu estou aqui para falar bem da
Dilma. Ela trabalha demais, se envolve com as coisas, é detalhista,
obstinada, só que…” Okamotto se arrumou na cadeira e se aproximou de
mim, como se fosse fazer uma confidência: “Um professor meu dizia que,
às vezes, ser obstinado, determinado, não é necessariamente bom. A
depender da posição que a pessoa estiver, se cometer um erro, vai
cometer mais rápido que todo mundo.”
Mercadante me recebeu para duas
conversas no Ministério da Educação, para onde voltou após deixar a Casa
Civil, no final de setembro. Na primeira, em novembro, foi misterioso
sobre sua saída: “Acho que tem minhas limitações, minhas dificuldades,
meu jeito de ser. Deve ser tudo verdade. Mas, sinceramente, o problema é
muito mais complexo.” Mercadante acredita ser uma espécie de guardião
da ética no Planalto, em ação alinhada com a presidente, contra os
vícios da política tradicional: “Não tem uma decisão que eu tomei na
Casa Civil que não atendeu a interesses republicanos, apesar de lidar
com interesses poderosos todos os dias.” Repetiu: “Todos os dias.”
Enquanto conversávamos, uma música vinda de um caminhão de som que
circulava pela Esplanada invadiu o gabinete: “Tá-rá-rá-rá-rá-rá,
tê-rê-rê-rê-rê-rê, Brasil vamos para as ruas tirar a Dilma e o PT.”
Dos oito ministros e seis ex-ministros com os quais a piauí
conversou, Mercadante pareceu ser o único que realmente gosta da
presidente. É inegável que a afinidade passa pela semelhança de
personalidade dos dois, a começar pelos acessos de fúria e pela
dificuldade de ouvir. “Se você fala para ela ‘Isso aqui é amarelo’, ela
fala: ‘É verde, seu imbecil, seu incompetente.’ O cara já treme e fala:
‘Você tem razão, é verde.’ Eu falo: ‘A senhora me desculpe, mas é
amarelo por causa disso, disso e disso’”, disse ele, rindo, e
acrescentou, em benefício próprio: “Mas, para falar com ela, você tem
que ter estatura.”
O ministro também recorre ao passado para comentar a boa relação com a
presidente. “O que as pessoas não entendem é que eu estava lá atrás com
ela, quando só sonhávamos com o Brasil que a gente teve a chance de
construir. Estávamos discutindo os mesmos temas, os mesmos assuntos. É
um laço muito profundo do ponto de vista dos valores.” Nos anos 70, os
dois cursaram pós-graduação em economia na Universidade Estadual de
Campinas, a Unicamp, no interior paulista, identificada com o pensamento
desenvolvimentista.
Mercadante ainda é um dos poucos que culpam o cenário internacional –
e não erros do próprio governo – como causa principal da situação do
país. “A crise econômica abala os emergentes pela queda abrupta no preço
das commodities. No nosso caso, a situação foi agravada pela
Lava Jato. Tem também a seca que gerou a crise no setor elétrico”,
disse, negando que as evidências já existiam e eram apontadas pela
oposição durante a disputa eleitoral. “O cenário mudou depois da
eleição”, justificou-se.
Na nossa segunda conversa, em dezembro, o ministro estava mais à
vontade para falar de sua saída da Casa Civil: “As razões estão mais
públicas do que antes. Há um setor do PMDB que aderiu à oposição e não
tem compromisso com nosso projeto. Já davam indicativos disso lá atrás.”
Perguntei qual era a relação de Temer com esse setor. “O PMDB sempre
foi dividido, nunca foi inteiro em nada, nem agora. O presidente Temer é
uma liderança muito importante. Nesses dez anos, foi um fator de
governabilidade. Mas tenho muitas divergências com o entorno, e eles têm
mais divergências comigo.”
Michel Temer pode ter sido um “fator
de governabilidade”, como disse Mercadante, mas Dilma nunca foi de
ouvi-lo. Com algumas poucas, raras exceções, sempre olhou com
desconfiança para os políticos, e a relação com o vice-presidente seguiu
essa lógica. Aliados dizem ser uma característica da época da
militância contra a ditadura em organizações clandestinas de esquerda.
Também é corrente a opinião de que a presidente politicamente bisonha,
de personalidade turrona e agressiva foi um fator que agravou a crise.
Depois de cinco anos, vários ministros se sentem cansados com os modos
de Dilma. “Quando você tiver 55 milhões de votos, você diz o que
fazer!”, gritou com um deles numa reunião. Outro contou que, no
chuveiro, ensaia respostas para as grosserias da chefe. Não raro as
cadeiras a seu lado ficam vazias nas reuniões de trabalho. A piauí
ouviu a seguinte conversa entre um ministro e um assessor, num dia de
convocatória presidencial para debater o impeachment: “E aí, ela te
chamou para jantar no Alvorada hoje? Não deu para fugir?”
Dilma parece se esforçar para inverter a máxima que o presidente
norte-americano Theodore Roosevelt aplicava na política externa: Speak softly and carry a big stick – fale manso e carregue um grande porrete. Dilma fala muito alto, e o seu porrete é cada vez menor.
Temer fala manso. Tem Ph.D. na política, foi presidente da Câmara por
três vezes, transitando com habilidade da canoa tucana para a petista.
Começou a carreira na década de 60, como chefe de gabinete da Secretaria
de Educação do então governador paulista Ademar de Barros, inspirador
do slogan “Rouba, mas faz”. Foi procurador-geral do estado de São Paulo e
secretário de Segurança Pública três vezes. Elegeu-se deputado por seis
mandatos.
Apesar do currículo, nunca foi a primeira opção de Lula para vice de
Dilma. Suas excelentes relações com o PSDB, especialmente com o senador
José Serra, levantavam – e ainda levantam – desconfiança. No PMDB, Lula
sempre preferiu ter como interlocutores Renan Calheiros e José Sarney.
Temer acabou se viabilizando como uma espécie de mínimo denominador
comum do partido, um agregador na confederação de caciques que é o PMDB.
O PT se viu constrangido a engoli-lo.
Em abril do ano passado, Dilma foi obrigada a, mais uma vez, recorrer
a préstimos do vice. O governo mal completava 100 dias, e uma sucessão
de reveses, agravados desde a eleição de Eduardo Cunha, evidenciava que o
Executivo havia perdido o controle do Legislativo e estava à deriva.
Temer foi chamado para assumir a articulação política, depois de Eliseu
Padilha, ministro da Aviação Civil e grande aliado do vice no PMDB, ter
recusado o cargo. “O governo estava no chão”, relembrou Temer no fim de janeiro, ao repórter Raymundo Costa, do Valor Econômico.
Sua missão era viabilizar a aprovação do ajuste fiscal justamente no
momento em que Rodrigo Janot, na esteira da Lava Jato, havia pedido ao
STF a abertura de inquérito contra 48 políticos, entre os quais Eduardo
Cunha e Renan Calheiros.
A chegada de Temer foi recebida com certo alento num primeiro
instante. Era como se Dilma, enfim, tivesse delegado o serviço a
profissionais. Não foi assim. A presidente testou as habilidades do vice
sempre com um pé atrás. Pediu a ele e a Eliseu Padilha que atuassem em
parceria com Mercadante e Ricardo Berzoini, à época nas Comunicações.
Resistia à ideia de dar muita autonomia de voo para as águias do PMDB.
Via o vice trabalhar em causa própria, para fortalecer seu grupo, e não
necessariamente para melhorar a relação do governo com os demais
partidos. Temer, por sua vez, ressentia-se. “Eles subestimam a
inteligência alheia”, desabafava. Não havia digerido (ou nunca vai
digerir) o episódio de 2011, quando Antonio Palocci, ministro da Casa
Civil, o ameaçou numa conversa por telefone. Palocci anunciou que
demitiria o ministro da Agricultura, Wagner Rossi, indicação de Temer,
caso o PMDB não votasse com o governo no Código Florestal. Temer se
revoltou: “Você está falando com o vice-presidente da República! Não me
ameace!” O então ministro se desculpou, mas aquela ligação, no viva-voz,
deixou em Temer a suspeita de que a presidente da República estava do
outro lado da linha, endossando o teor da conversa. Quando Temer
conseguiu aprovar as duas medidas provisórias do ajuste fiscal no
Congresso, não recebeu um único telefonema de agradecimento do Planalto.
Nem de Dilma nem de Mercadante.
A imobilidade do governo e a demora nas nomeações demandadas pelos
aliados provocavam o Congresso. No começo de agosto, Temer recebeu um
grupo de deputados da base. Ameaçavam aprovar pautas-bomba caso suas
indicações não fossem destravadas. O impacto no caixa do governo seria
de bilhões. Mal deixou o encontro, o vice ligou para Dilma e avisou, em
tom apocalíptico: “Vai acontecer um desastre.” Ofereceu-se a fazer um
pronunciamento que sensibilizasse os políticos para o momento crítico do
país. “Faça isso”, respondeu Dilma. Temer convocou a imprensa e, na
porta da Vice-Presidência, se pôs a falar sobre a necessidade de união.
Foi aí que soltou: “É preciso que alguém tenha capacidade de reunificar a
todos, reunir a todos, de fazer esse apelo. Eu estou tomando a
liberdade de fazer este pedido porque, caso contrário, nós podemos
entrar numa crise desagradável para o país.” Sua fala deixava implícito
que Dilma não era aquele alguém. O sinal amarelo piscou no gabinete
presidencial.
Depois de quatro meses na função, Temer cansou-se do teste de
fidelidade. “Tenho um capital político de 33 anos. Estou sendo sabotado.
As pessoas estão cobrando o meu cartão de crédito”, disse, no final de
agosto, em conversa com a presidente, na qual afirmou que não ficaria
mais na articulação política. No momento em que Dilma passava a ser a
presidente mais impopular da história, o vice oficializava seu
distanciamento do governo. A ponto de uma semana depois comparecer à
reunião do Movimento Liberal Acorda Brasil, de oposição, e fazer um
discurso aos convidados, com o seguinte diagnóstico: era difícil o
governo chegar ao final do mandato com a popularidade entre 7% e 8%.
O sinal piscou de novo no gabinete de Dilma. Agora vermelho.
Entre os 4 quilômetros da Via
Presidencial, que liga o Palácio da Alvorada, onde mora a presidente, ao
Palácio do Planalto, onde ela trabalha, está o Palácio do Jaburu. Foi
projetado em 1973 por Oscar Niemeyer e inaugurado em 1977, com a mudança
para lá do vice de Ernesto Geisel, o discreto general Adalberto Pereira
dos Santos. Dos seis inquilinos do Jaburu, apenas um tornou-se
presidente da República: o mineiro Itamar Franco, que assumiu o cargo em
1992, quando Collor renunciou.
Temer ocupa o palácio desde 2011 e, até pouco tempo, lembrava
Adalberto Pereira dos Santos na prudência. Nos últimos meses, contudo, o
vice ficou mais solto. O Jaburu se transformou em QG do movimento
pró-impeachment. Sua sala de estar, menor e mais discreta que o enorme
salão do Alvorada, virou ponto de encontro dos maiores defensores da
cassação da presidente. Entre as presenças assíduas estão Moreira Franco
(ex-ministro de Dilma), Geddel Vieira Lima (ex-ministro de Lula) e seu
irmão Lucio, deputado pelo PMDB da Bahia. Ao grupo, não raro se junta
Eduardo Cunha. Políticos, empresários e diplomatas passaram a frequentar
mais o Jaburu.
Temer foi se descolando do governo em busca de luz própria. Com a
falência da matriz econômica de Dilma e o ajuste de Joaquim Levy sendo
bombardeado pelo próprio PT, o vice incumbiu Moreira Franco de criar um
programa com propostas econômicas. Moreira pediu a Roberto Brant,
ex-ministro da Previdência de Fernando Henrique Cardoso, que redigisse
um documento. A ideia era apresentar ao país algo que agradasse não só
ao empresariado como também aos economistas ortodoxos, dos quais partiam
os ataques mais severos ao ideário econômico de Dilma. Brant compilou
teses e artigos publicados em jornais que estavam em consonância com
esse pensamento. Pediu ajuda a Delfim Netto, que conversou com José
Serra. Os economistas José Márcio Camargo, professor da Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, e Marcos Lisboa, presidente do
Insper, ambas escolas de inspiração liberal, com formação divergente da
Unicamp, foram escalados para reler o documento, que recebeu o nome
oficial de “Uma Ponte para o Futuro”. Mas passou a ser chamado, sem o
menor constrangimento, de “Plano Temer”.
O Plano Temer foi lido em encontro do PMDB, no qual o vice foi
chamado de “presidente”. Também foi apresentado a empresários do eixo
Rio–São Paulo. Em novembro, acompanhei o senador Romero Jucá (PMDB-RR) a
um desses encontros. Líder nos governos FHC, Lula e Dilma, Jucá é
cotado para ser vice-presidente do PMDB em março, quando Temer tentará
se reeleger presidente do partido. “Esse documento é um pano de fundo
para uma transição”, disse a cerca de vinte analistas do mercado
financeiro, reunidos num escritório próximo à Faria Lima. “O governo
Dilma é um governo ideológico, intervencionista e corporativista. Tudo o
que não se deve ser”, disse Jucá, causando boa impressão na plateia,
que se alinhava ao senador nas críticas à administração petista. “E os
gastos com a Previdência? Haverá cortes?”, queriam saber. “E o Bolsa
Família?”, insistiam. No fim, Jucá nem disfarçou: “O governo Dilma não
tem aliança no Congresso para aprovar mais nada. Precisamos agora de uma
transição. O país não aguenta ficar no limbo por mais três anos.”
Coordenador do Plano Temer, Moreira
Franco é considerado um dos cérebros por trás do impeachment.
Ex-governador do Rio, foi vice-presidente de Fundos e Loterias da Caixa
Econômica Federal na gestão Lula e ministro da Aviação Civil de Dilma
até 2014. Não emplacou no segundo mandato e acabou nomeado por Temer
para a presidência da Fundação Ulysses Guimarães, ligada ao partido.
Possessa com a movimentação de Moreira, Dilma passou a se referir a ele
como “gato angorá”, em razão da farta cabeleira branca – o apelido foi
dado pelo adversário Leonel Brizola, um dos poucos heróis políticos de
Dilma. “Conspiração é em off. Em on, nunca vi. Isso não é conspiração, é posição política”, rebate Moreira, recorrendo aos termos jornalísticos on e off the records.
“O impeachment não é golpe. É uma regra que existe em várias
democracias. Sobretudo na principal delas, a americana. Está escrito na
Constituição e nas leis do país”, disse, em dezembro, no 26º andar de
uma das torres gêmeas do Congresso, onde fica a fundação. “E vai dizer
que é o PMDB, que é o Michel Temer que fica conspirando?”
Moreira explicou, com orgulho, o Plano Temer. Disse que ele propõe
responsabilidade fiscal e o controle da inflação, “bens do cidadão
brasileiro”. “Essa crise não é uma crise decorrente do ambiente
internacional. Isso tudo tem uma razão: ideologia. Economia é dia a dia,
e a ferramenta é a aritmética. O que se quis fazer foi política
econômica abrindo mão das operações fundamentais.” Lembrei que o
PMDB faz parte do governo, ocupa sete ministérios, além da
Vice-Presidência. Em tese, endossaria a política econômica. Moreira
Franco, inclusive, estivera no governo durante as “pedaladas fiscais”,
quando o Tesouro, já com problemas de caixa, recorreu aos bancos
públicos para o pagamento de benefícios sociais, o que infringe a Lei de
Responsabilidade Fiscal. As pedaladas são um dos principais pilares do
pedido de impeachment contra Dilma e levaram o Tribunal de Contas da
União (TCU) a sugerir, por unanimidade, a rejeição das contas do governo
de 2014. “O PMDB não tem responsabilidade pelo acerto nem pelo erro
porque nunca foi ouvido nessa área. Nós reclamávamos de um certo
desleixo com a inflação que crescia. Eles [PT] achavam que o
problema era de comunicação. Falei que tinha problema com a inflação,
ela ficou puta. Disse que não era nada disso”, contou sobre uma reunião
com Dilma enquanto ministro.
O garçom colocou uma pedra de gelo numa bebida rosada, da cor de
Campari. Era suco. A condução do impeachment por Cunha deslegitimaria o
processo? “Essa é uma forçação de barra. E não é ele que vai tocar isso,
é a comissão especial. Depois, o plenário da Câmara que vai julgar”,
disse, sentado na frente de um painel com uma imagem de Ulysses
Guimarães segurando a Constituição de 1988. Perguntei se ele é a favor
do impeachment, o que parecia claro àquela altura da entrevista. “Não
interessa a minha opinião. Nem a sua. Cada deputado vai dar o voto e tem
que ficar atento ao que os eleitores estão querendo. Dia 13, vai ter um
esquenta”, afirmou, animado, referindo-se à manifestação a favor do
impeachment do dia 13 de dezembro.
O esquenta deixou a desejar. Foi o mais fraco dos atos contra Dilma. Na
avenida Paulista, pouco mais de 40 mil pessoas se reuniram, bem menos
que os 210 mil registrados em março, no maior protesto. A aposta agora é
na manifestação programada para o mês que vem.
A televisão em um
gabinete da Vice-Presidência mostrava cenas de uma manifestação em São
Paulo. De costas para as imagens, Eliseu Padilha torceu um pouco o
tronco para acompanhar o confronto entre polícia e manifestantes, que em
janeiro protestavam contra o aumento na tarifa do transporte público.
Aliado de Temer, ele pediu demissão da Secretaria da Aviação Civil no
dia seguinte ao acolhimento do impeachment por Cunha. Assim como o vice,
Padilha é advogado, hábil negociador político e tem bom trânsito na
oposição – foi ministro dos Transportes de FHC por cinco anos.
Sem desgrudar os olhos da tevê, ele afirmou que traçar prognósticos
sobre o impeachment não passa de “futurologia”. “Ninguém sabe o que vai
acontecer”, falou, enquanto apontava para as imagens, dando a entender
que via as ruas como uma variável determinante e incontrolável do
processo. “Além disso, esse é um tema que não é pauta do partido. É,
primeiro, do Poder Judiciário e, depois, será do Poder Legislativo.”
Então qual a razão das movimentações do vice? “Não há nenhum fundamento
nisso. Quem conhece o Michel sabe que ele é um legalista. Não é de
conspirar.”
Os batedores cercaram a entrada do prédio, na região central de São
Paulo, no dia 7 de dezembro. Um cordão de isolamento impedia que
qualquer um se aproximasse do vice-presidente. Acompanhado por Moreira
Franco, Temer chegava à Fecomercio–SP, entidade que representa 1,8
milhão de empresas. Lá apresentou o Plano Temer para trinta empresários.
Assim como no encontro de Jucá com representantes do mercado
financeiro, o programa causou boa impressão. O vice-presidente foi
aplaudido de pé. Desde o histórico dia 2, quando Cunha abriu os
trabalhos do impeachment, Temer estava confiante. Chegou a desmentir os
ministros Jaques Wagner e Edinho Silva (Comunicação Social), que haviam
forçado a mão ao dizer para a imprensa que ele assessoraria Dilma na
batalha contra o impedimento e que via falta de “lastro jurídico” no
pedido acatado pelo presidente da Câmara. Temer, advogado
constitucionalista, foi a público afirmar que nem ajudaria Dilma nem via
falta de “lastro jurídico” no pedido.
Sua agenda flertava cada vez mais com a oposição. Três dias depois do
anúncio de Cunha, foi homenageado por outro grupo de empresários, em um
almoço ao lado do governador de São Paulo, o tucano Geraldo Alckmin. No
próprio dia 2 de dezembro, recebeu no Jaburu sete senadores da
oposição, entre os quais Serra, que em entrevistas anunciou que
colaboraria com Temer num eventual governo. Aécio Neves não participou
do almoço. Num cenário em que o impeachment se tornava cada vez mais
real, a relação de proximidade entre Temer e Serra levou a mais uma
fissura no PSDB, que passou, deliberadamente, a figurante na novela.
Quanto mais Serra entusiasmava-se com um governo Temer, mais Aécio,
presidente do PSDB, puxava o freio de mão. A ascensão de Temer ao
Planalto trazia, inexoravelmente, Serra no pacote – como ministro e,
então, eventual candidato à sucessão.
“Temer foi um instrumento desse governo que acabou com o Brasil”, marcou posição Aécio, em entrevista à Folha em dezembro,
catorze dias após Serra declarar que faria “tudo” o que estivesse a seu
alcance para colaborar com o vice. Depois de ter flertado com Cunha
durante meses e se desgastado como liderança viável, Aécio colocou o
foco na “solução TSE”. O Tribunal Superior Eleitoral irá julgar neste
ano as ações movidas pelo grupo de Aécio depois das eleições, nas quais a
chapa Dilma–Temer é acusada de abuso de poder político e econômico na
campanha presidencial de 2014. Se condenados, não só Dilma como Temer
serão cassados, e o país passará por nova eleição. A “solução TSE” limpa
o caminho para Aécio, tirando, inclusive, Serra da rota. Os tucanos
estão como sempre estiveram – divididos.
As movimentações de Temer com a oposição e com o empresariado
irritaram a presidente, mas a verbalização do desconforto veio de um
aliado de fora da Esplanada. O ex-ministro Ciro Gomes o chamou de
“capitão do golpe”.
Em janeiro, procurei Abram Szajman, presidente da Fecomercio–SP. A
entidade produz uma série de indicadores que mostram deterioração da
economia. O Índice de Consumo das Famílias, por exemplo, apresentou em
2015 o pior desempenho desde 2010. O empresário atacou a política
econômica de Dilma e disse estar preocupado com o ambiente econômico,
especialmente com o desemprego. “Não sei bem o que pode acontecer.
Precisamos encontrar uma solução para não ter ruptura em termos de
violência. Aqui em São Paulo estamos vendo uma coisa pequena, que é o
problema do transporte. Mas é simples achar que é só o transporte”,
afirmou, na sala de reuniões da entidade, onde uma grande escultura de
cavalo, em metal, se destacava no ambiente sóbrio. Szajman arriscou uma
previsão: “As manifestações de 2013 podem estar voltando a ser o estopim
de algo maior. O Congresso começa a funcionar depois do Carnaval. Aí,
tem o desemprego aumentando. A crise não está solucionada.”
Perguntei se Michel Temer poderia resolver. “Ele é um homem
tranquilo. Nós estamos precisando de alguém que tenha tranquilidade para
não deixar o país descambar para o lado ruim.” Mas fez uma ponderação:
“Ele não é uma figura carismática, e o Brasil precisa de alguém com mais
carisma. Mas, se tiver o impeachment, numa transição, ele pode assumir
para um mandato-tampão.” Szajman disse que achou “bom” o Plano Temer.
“Muito bom”, complementou um economista que acompanhava a entrevista.
Apesar de bom, observou Szajman, “nem todos” acreditam na possibilidade
de o PMDB executá-lo. “O PMDB está muito ligado ao governo. Tem sete
ministros, está envolvido com problemas.”
OPMDB de Temer já não estava mais tão
ligado ao governo. Na segunda-feira em que visitou Szajman, o vice
escreveu uma carta para a presidente. Com a ajuda de Moreira, redigiu o
texto e o mandou por e-mail para Brasília, onde sua chefe de gabinete,
Nara Vieira, imprimiu, colocou num envelope, lacrou e entregou para o
chefe de gabinete de Dilma, Álvaro Baggio. No final da tarde, a
presidente recebeu a carta e a leu na sua mesa de trabalho. Mostrou o
documento para Berzoini e Wagner e, depois, para Cardozo. “Muito
estranho”, acharam todos. Em três páginas, Temer fazia um inventário do
varejo que pautou sua relação com o governo e reclamava do desprestígio
com que tinha sido tratado. Entre outros ressentimentos, citava o dia da
posse, quando Dilma esteve com o vice-presidente americano, Joe Biden, e
quebrou o protocolo ao não levá-lo para o encontro. Em tom de mágoa,
dizia ser um “vice decorativo”. Logo na abertura, à guisa de dirimir
dúvidas sobre as versões desencontradas a respeito de sua atuação nas
últimas semanas e, mais do que isso, para fixar, como se necessário
fosse, que o documento era o que ele de fato pensava de Dilma e do
governo petista, escreveu em latim: Verba volant, scripta manent.
As palavras voam, a escrita fica. No governo correu a piada de que uma
carta do presidente do PMDB só poderia começar com a palavra “verba”.
Às 19h10, o jornalista Ricardo Noblat, uma das vozes críticas ao governo Dilma, soltou no Twitter:
“Sugestão p/ Temer: mande uma carta p/ Dilma explicando sua posição em
relação ao momento. Assim não precisará encontrá-la tão cedo.” Vinte e três minutos depois, cravou:
“Temer mandou entregar uma carta a Dilma.” Contava, ainda, que o vice
acabara de decolar para Brasília. Em poucos minutos, os celulares dos
ministros começavam a tocar, e as mensagens de WhatsApp, a piscar.
Jornalistas queriam confirmar com o Planalto se aquilo fazia sentido. Os
ministros não só confirmaram a existência da carta, como disseram que
se tratava de um rompimento. A versão do rompimento foi para a tevê, e
Temer reagiu. Pegou ele mesmo o telefone e falou com jornalistas. Sim, a
carta existia. Não, não era um rompimento. Dizendo-se incomodado com a
versão do Planalto, divulgou a íntegra da carta, publicada em primeira mão por O Globo.
Naquela mesma noite, Dilma convocou ministros para jantar no Palácio
da Alvorada. Cardozo defendeu que ela respondesse à carta. O
advogado-geral da União, Luís Inácio Adams, ponderou: “Presidenta,
cuidado. Não esqueçamos como começou a Guerra Franco-Prussiana.” Adams
referia-se ao Despacho de Ems. Na segunda metade do século XIX, o rei da
Prússia, Guilherme I, por meio de um assessor, enviou uma carta ao seu
chanceler, Otto von Bismarck, a respeito de um encontro que tivera com
um embaixador da adversária França, de Napoleão III. Bismarck
ardilosamente editou o texto e o vazou para a imprensa. A versão
adulterada dava a entender que o rei insultava o embaixador francês.
Como previa Bismarck, Napoleão III declarou guerra à Prússia, que, como
também previa Bismarck, não só venceu a França, como anexou e unificou
territórios, culminando na formação do Império Alemão ou Segundo Reich.
Dilma ignorou a história, mas adotou a cautela e resolveu não
responder à carta de Temer. Pouco antes da meia-noite, Adams já estava
em casa quando o vice o chamou para ir ao Jaburu. Chegando lá,
encontrou-o em companhia de Moreira Franco e Eliseu Padilha, com “olhar
de menino travesso”. Temer reclamou do vazamento. Culpava o Planalto por
ter começado a guerra de versões. “Nós tivemos de vazar a íntegra
porque vocês vazaram trechos que davam interpretação errada sobre um
rompimento”, disse o vice. Adams questionou se o vazamento não poderia
ter sido deflagrado por alguém da equipe do próprio Temer. “Prove que eu
demito”, rebateu.
Até hoje não se sabe ao certo que lado foi o primeiro a vazar e o que
exatamente cada um deles vazou. Ouviu-se que a carta apequenava Temer e
que, portanto, ele não teria interesse na sua divulgação. Por outro
lado, o vazamento lhe foi oportuno: deixou claro que o vice não fazia
mais parte de um governo que parecia prestes a ser destituído. Temer não
estava mais “ligado” àquele projeto, como destacou Szajman.
A carta virou chacota nas redes sociais. Em algumas das imagens que
circularam pela rede, Temer aparecia como Frank Underwood, o político
vilão da série americana House of Cards, protagonizada por
Kevin Spacey, que não tem nenhum escrúpulo para ascender na política –
se precisar matar, ele mata. Apesar das piadas, a carta rendeu um fruto
ao vice: Joe Biden o convidou para uma visita aos Estados Unidos.
Mais do que a Temer, o vilão Frank
Underwood é associado a Cunha, que, no PMDB fluminense, tornou-se uma
voz isolada de oposição ao governo. Com as finanças em frangalhos e a
Olimpíada no horizonte, o governador Luiz Fernando Pezão e o prefeito
Eduardo Paes dependem da generosidade federal para tocar a máquina.
Governador e prefeito tornaram-se aliados circunstanciais de Dilma,
assim como o presidente da Assembleia Legislativa do estado do Rio de
Janeiro, Jorge Picciani, que comandou campanha pró-Aécio Neves em 2014.
Dos 27 governadores, Pezão é o mais próximo de Dilma. “Desde o fim da
eleição eu falo para ela que o país tinha saído dividido e que eu
achava que, no próximo mandato, ela tinha que ter um diálogo mais
próximo da oposição”, contou, no dia 2 de dezembro, em seu gabinete no
Palácio Guanabara, enquanto enfiava uma folha de papel num triturador.
Passava um pouco das seis da tarde quando uma assessora interrompeu a
entrevista para avisar que Cunha aceitara o pedido de impeachment. “É
mesmo?”, reagiu, surpreso. Virou-se imediatamente para o computador ao
lado de sua mesa em busca das notícias. “É o jogo dele. Estava acuado.” O
celular tocou. Ele atendeu e foi breve: “Sérgio, já te ligo.” Era o
ex-governador Sérgio Cabral, de quem Pezão fora vice e de quem herdou o
comando do estado. O mesmo Cabral que tentou tirar de Temer a indicação
para vice na chapa de Dilma à reeleição.
Pezão parece lamentar a situação. “Tentei ajudar para ele [Cunha]
fazer uma pauta positiva, não uma pauta-bomba, que o país não
precisava. O mandato é muito curto para você passar o tempo brigando.”
Eu quis saber das movimentações no PMDB a favor do impeachment. “O
Moreira, depois que saiu do ministério, ficou com essa agenda. As
pessoas têm que entender que você monta com quem quer. O PMDB gosta
muito de cargo, de ministério, né?” Checando o celular, Pezão continuou:
“O Michel é uma pessoa boa. Mas não sei… Ficar ouvindo o Eduardo Cunha e
o Moreira Franco todo dia não deve ser fácil. Ninguém aguenta. O anjo
mau e o anjo ruim”, disse, fazendo com uma das mãos o gesto de falação
na altura das orelhas.
O governador então me perguntou o que aconteceria com Temer: “Se vai
cassar ela, vai cassar a chapa, né?” Eu disse que não, que o processo
para cassar a chapa corre no TSE. “Mas o Michel sendo o vice?” Repeti
que não, o impeachment é só contra Dilma. Pezão franziu as sobrancelhas e
fez cara de comiseração. “Aquilo ali é muito solitário. Home care no palácio, a mãe doente [a mãe de Dilma tem Alzheimer]. Conviver com aquilo ali, com Cunha, com PT, hein? TSE, TCU, Lava Jato… Porra, é uma bomba atômica.”
Leonardo Picciani, filho de Jorge Picciani, é líder do PMDB na Câmara
dos Deputados e integrante da infantaria que tenta desarmar a “bomba
atômica” do impeachment. Aos 36 anos, não por acaso é um dos deputados
mais efetivos na arte das nomeações com o Planalto. Na semana seguinte à
decisão de Cunha, Picciani-filho negou aos deputados defensores da
cassação uma vaga entre as oito do PMDB na comissão especial da Câmara
que fará o relatório do impeachment a ser submetido ao plenário da Casa.
Temer tentou dissuadi-lo. “Tenho mais quilometragem que você. Faça uma
composição com os demais grupos.” Alinhado ao Planalto, Picciani pagou
para ver, e Cunha reagiu. Tirou da cartola uma “chapa avulsa”, coalhada
de nomes contra o governo, e convocou uma eleição secreta para os
deputados escolherem qual das duas chapas formaria a comissão especial
do impeachment: a governista ou a avulsa.
A piauí estava no Palácio do Planalto, no gabinete
de um ministro, no dia 8 de dezembro, quando Cunha convocou o plenário
da Câmara para escolher entre a chapa governista e a chapa avulsa, em
meio a trocas de sopapos entre os deputados que eram contra ou a favor
do impeachment. Assistíamos às cenas pela televisão. Depois de alguns
minutos de quebra-quebra, Cunha anunciou o resultado da eleição. Deu
chapa avulsa. A bomba explodia no Planalto. Os deputados a favor do
impeachment dominariam a comissão especial e o relatório da cassação de
Dilma. O ministro ficou chocado. Uma das mãos tampou a boca, em franco
sinal de incredulidade. Assim como no caso da eleição de Cunha para a
presidência da Câmara, o governo Dilma mais uma vez leu mal o cenário,
mais uma vez pagou para ver e mais uma vez perdeu. “Agora, só nos resta o
STF”, lamentou o ministro. Pela tevê, ainda dava para ver cenas do
plenário da Câmara, onde deputados oposicionistas comemoravam a vitória:
passando de mão em mão um Pixuleco, boneco de Lula com a roupa de
presidiário, cantavam: “Ai, ai, ai, ai, tá chegando a hora…”
No final de 2015, assessores de Dilma
brincavam que “cinco pragas do Egito” haviam acometido o Planalto. Não
bastasse a economia em farrapos e a Lava Jato, trazendo ministros do
Palácio para dentro do escândalo, a presidente tinha que lidar com a
lama de Mariana, o surto de microcefalia e o impeachment, cada vez mais
iminente. Esta última “praga” ficou sob a responsabilidade do ministro
José Eduardo Cardozo. “A gente tinha clareza de que Cunha detonaria o
processo em algum momento, e que usaria isso como chantagem”, afirmou o
titular da Justiça, em seu gabinete, quase à meia-noite, em janeiro,
dias antes de sair de férias. O recesso parlamentar fez o governo baixar
a guarda, e os ministros mais envolvidos com a batalha do impeachment
aproveitaram para viajar.
Cardozo é o responsável pela Polícia Federal, cujas investigações na
Lava Jato, em Curitiba, podem engrossar o caldo dos que defendem a
cassação de Dilma. Outro dia, não aguentou e tirou uma foto com Newton
Ishii, “o japonês da Federal”, personagem que caiu no gosto popular
depois de ser visto tantas vezes escoltando figurões a caminho da prisão
em Curitiba. Cardozo posou sério ao lado do agente e, numa brincadeira,
mandou a foto para a filha. Na imagem, parecia que o preso da vez era
ele.
Sob a orientação de Cardozo, o governo se agarrou à “judicialização”
do debate do impeachment, questionando no STF todos os passos dados por
Cunha. “Sabíamos que a Lei do Impeachment era muito antiga [de 1950]
e tinha espaço para discussão.” A guerra começou em outubro, quando
três deputados da base governista que são advogados – Paulo Teixeira, do
PT paulista, Wadih Damous, do PT fluminense, e Rubens Pereira Júnior,
do PCdoB do Maranhão – ingressaram no Supremo com mandados de segurança
para suspender o chamado “Manual de Cunha para o Impeachment”, que
criava regras para o rito e fora editado em dobradinha com a oposição.
Em dezembro, no dia seguinte à decisão de Cunha de acatar o impeachment,
o PCdoB, aliado mais fiel no Congresso, ingressou no Supremo com uma
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). Embora os
comunistas tenham sido o vetor, a ação foi gestada no coração do governo
por um grupo de advogados do Ministério da Justiça e da Casa Civil, em
parceria com dois constitucionalistas contratados para a função. Na
ADPF, “a menina dos olhos” da estratégia de defesa, o Planalto queria
que o Senado, onde a base governista é um pouco menos frágil, tivesse o
poder de barrar o processo de impeachment, mesmo que o plenário da
Câmara aprovasse sua abertura.
Em suma, queria que o rito fosse o mesmo de 1992, usado no
impeachment de Collor, quando o STF fez uma interpretação da
Constituição de 1988 para definir a regra. A judicialização se
estenderia até a semana seguinte, quando os governistas voltaram a
recorrer ao STF em nome do Planalto, dessa vez para questionar a
aprovação pelo plenário da Câmara da chapa avulsa pró-impeachment.
A ADPF e os questionamentos da manobra de Cunha na composição da
chapa acabaram nas mãos do ministro Luiz Edson Fachin, que faria o
relatório para ser votado pelo plenário do Supremo.
A votação fixaria as regras do processo de cassação contra Dilma. O
governo respirou aliviado. Fachin era um ministro que não só havia sido
nomeado por Dilma, em 2015, como tinha assinado documento a favor de sua
eleição em 2010. Sua indicação fora bombardeada por setores da
sociedade e da imprensa, que o viam muito à esquerda, mas Dilma bancou a
nomeação. Cardozo acalmou a presidente. Aquele voto seria favorável.
Na véspera do julgamento da ação, no dia 16 de dezembro, Fachin
distribuiu o voto para os demais ministros do STF, e parte dele foi
vazado para a imprensa. Era um balde de água gelada na cabeça do
governo. Nas 100 páginas de considerações, derrota atrás de derrota para
o Planalto: a chapa da comissão pró-impeachment valia, o voto era
secreto, e o Senado era obrigado a acatar a decisão da Câmara. Naquela
noite, no Alvorada, o clima foi de funeral. Lula, Cardozo, Adams,
Wagner, Berzoini e Falcão tentavam entender o que tinha acontecido. Se
Fachin votara daquele jeito, o pior ainda estava por vir no dia
seguinte. Lula não quis nem jantar. Dilma, abatida, confidenciou que
tinha recebido uma “punhalada nas costas”.
Por volta das duas e meia da tarde, os onze ministros do Supremo
Tribunal Federal entraram no plenário amarelo que simboliza a bandeira
brasileira, ao lado dos salões verde, da Câmara, e azul, do Senado. O
silêncio grave do ambiente só era quebrado pelos passos dos ministros e
os cliques das máquinas fotográficas. O presidente do STF, Ricardo
Lewandowski, sentou-se à frente do painel de mármore, de Athos Bulcão,
onde está pregado o crucifixo de Alfredo Ceschiatti, simbolizando juntos
a justiça dos homens e a de Deus. Anunciou o voto do “eminente ministro
Roberto Barroso”. Advogado progressista indicado por Dilma em 2013,
Luís Roberto Barroso avisou, da última das cinco cadeiras à direita de
Lewandowski, que seu voto seria “curto” e “simples”. Tinha o ar cansado,
com duas bolsas abaixo dos olhos. Em poucos minutos, afirmou que se
pautava “pela jurisprudência que o Supremo já definiu em matéria de
impeachment durante o procedimento de 1992”. Adotava, portanto, o
entendimento defendido pelo governo, abrindo a divergência com Fachin. O
Senado tinha o poder de barrar a decisão da Câmara. O Planalto
animou-se.
Às vésperas da votação, Barroso recebera em seu gabinete emissários
do governo, como Adams e o próprio ministro da Justiça. Os dois levavam
os argumentos do Planalto e pediam, justamente, que fosse respeitado o
rito de 1992. Questionado pela piauí, Barroso admitiu o
encontro, mantido em sigilo até então. “O ministro da Justiça me pediu
uma audiência. Não teria razão para negá-la”, afirmou em e-mail. Barroso
disse também que “em nenhuma hipótese” antecipou seu voto. “Só ouvi”,
escreveu.
O ministro votou também contra a chapa avulsa de Cunha e a favor do voto
aberto dos deputados na comissão especial. Sua posição acabou sendo
majoritária entre os ministros.
Após um ano de batalhas perdidas, o Planalto conseguia ganhar uma sobrevida no STF.
Pouco depois das nove da noite, no
III Comar (Comando Aéreo Regional), no Rio, Dilma recebeu a informação
de que a votação do Supremo estava encerrada. Ela havia chegado à cidade
no final da tarde e, ao lado de Pezão e Paes, participara da cerimônia
de inauguração do Museu do Amanhã.
De volta ao aeroporto, já na cabine do Airbus A319CJ, o avião
presidencial, pôde analisar com calma o placar da votação.
“Sensacional”, vibrou ao saber detalhes dos votos dos ministros. “E o
Fachin, hein?”, especulou o ministro Juca Ferreira, da Cultura. “E o
Toffoli!”, agravou o secretário de Imprensa Rodrigo de Almeida, sobre o
ex-advogado do PT e ex-advogado-geral da União no governo Lula, que
votou contra o governo em todos os pedidos.
Pouco antes de decolar, Dilma respirou
aliviada: “Estávamos com a faca no pescoço.” O avião começava a
sobrevoar a Baía de Guanabara, rumo a Brasília, onde se travará o
segundo round da batalha pelo impeachment. Agora, na comissão especial
da Câmara.